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31 agosto 2015

Sobre primeiras vezes

O início de qualquer coisa é assustador. A primeira vez fazendo algo é sempre motivo de ansiedade porque as coisas parecem infinitamente mais difíceis quando não temos um referencial, quando nos jogamos no escuro. Até passarmos por isso. Ultrapassando o primeiro obstáculo, as coisas começam a engrenar e gradativamente vamos nos acostumando. Nosso cérebro cria uma nova rotina e passa a segui-la. Quando nos damos conta, tudo está tão natural que não é mais custoso fazer aquele percurso. Isso vale pra tudo: escola, emprego, faculdade... 

Pensando nessa temática de "primeiras vezes" lembrei que dia desses eu atendi, de verdade, o meu primeiro paciente. Quando digo "de verdade" não quero dizer que até então eu atendia animais ou pacientes imaginários. O caso é que até então sempre tinha um professor junto (literalmente do lado) orientando cada movimento nosso. Até que eles deram a louca e decidiram que iriam jogar a gente na clínica sem nenhuma experiência no maior estilo "beleza, foda-se, vocês já estão grandinhos o suficiente e prontos pra lidarem com as responsabilidades". Foi a primeira vez que eu chamei o paciente na sala de espera, acompanhei ele até a cadeira, conversei com ele, anotei todas as suas queixas no prontuário, fiz o exame físico e elaborei o plano de tratamento. Pela primeira vez eu atendi um paciente como se eu fosse uma dentista formada (ou quase isso) e foi impossível não lembrar de como é assustador fazer alguma coisa pela primeira vez. Ainda mais quando os professores fazem uma espécie de Jogos Vorazes, largando todo mundo na clínica, salve-se quem puder! 


Tudo o que eu sabia era que na hora do atendimento tudo começa pelo nome. E eu sou péssima com nomes. Quando peguei o prontuário e fui pra sala de espera chamar meu paciente, tentei programar meu cérebro pra lembrar daquele rosto. Quando achei que estava mais ou menos pronta, o chamei - há essa altura todo mundo já devia estar pensando que eu estava maluca ou tinha paralisado como o Chaves.


Ser simpática nunca foi difícil pra mim, então perguntar como ele estava e fazer algumas piadinhas pra descontrair não me fizeram tremer na base. Chegamos até a cadeira, ele sentou no lugar que eu estava mais acostumada a ocupar e foi quando eu percebi: era a minha primeira vez atendendo um paciente. De verdade. E eu não sabia como agir.


No meio das perguntas da anamnese eu já tinha esquecido o nome do paciente, já tinha rasurado o prontuário, não sabia fazer as contas de quantos anos o homem tinha com base na sua data de nascimento. Fui aferir sua pressão e na primeira tentativa ela estava 60/40 - algo que até ele, leigo no assunto, percebeu que era impossível. Foi nesse momento que eu percebi que precisava respirar. Abaixei um pouco a máscara, dei uma respirada, coloquei-a novamente. Então comecei a conversar com o paciente como se ele fosse um amigo. Demonstrei interesse pela sua história. Descobri que ele tinha 57 anos e era aposentado, mas ainda fazia uns "bicos" com trabalhos manuais. Numa dessas atividades, tinha sofrido um acidente, há uns dois anos, com uma máquina de cortar madeira. Seu rosto foi ferido por um corte que atravessou toda a extensão horizontal da face por cima do lábio superior e um pouco abaixo do nariz. Depois que ele falou, parei pra reparar: realmente, ali tinha uma cicatriz quase imperceptível. Com um astral pra lá de alto, ele se divertia contando desgraças (amo/sou pessoas que sabem rir da própria desgraça) e quando percebi a primeira parte do atendimento estava completa. Anotei mentalmente: nunca perder o encanto pelas pessoas. 


Quando chegou a hora de colocar a ~mão na massa~, aquela sensação de "que porra que eu tô fazendo?" me invadiu novamente. Tantos instrumentais, tantas coisas passando pela cabeça... Como escolher, no meio de tanta parafernália, a coisa certa? Até que, novamente, respirei fundo e tentei lembrar de todas as aulas teóricas que tive e, aliando aos conhecimentos práticos, comecei a atender. A manhã passou num instante. Agendei uma nova consulta, liberei o paciente e sentei - aliviada - pra planejar o que faria nas próximas vezes. 

Vindo pra casa depois dessa aula, me peguei pensando em tudo isso. Sobre como primeiras vezes são aterrorizantes, sobre como às vezes tudo o que a gente precisa é parar e dar uma respirada pra oxigenar o cérebro e pensar com mais clareza. Sobre como a cada dia nos expomos a novas "primeiras vezes" e sobrevivemos a todas elas... E percebi que, embora aterrorizantes, primeiras vezes são encantadoras. Mágicas. E que aquela sensação de frio na barriga, nó na garganta e borboletas no estômago não aparece só quando a gente tá apaixonado...

Quarta-feira vou realizar a terceira consulta do meu primeiro paciente. Passados os perrengues iniciais, já me sinto bem em atendê-lo. Ainda lembro seu nome e seu rosto. Lembro das histórias que me contou e mesmo sabendo que ao longo da vida vou atender milhares de pacientes, ouvir milhares de novas histórias e passar por diversos outros casos clínicos, sempre lembrarei do meu primeiro paciente. E de como trabalhar com pessoas pode ser gratificante.

5 comentários:

  1. Adorei o post, Brendha. Também fico super nervosa com primeiras vezes. Acho que seria bem melhor se a primeira vez viesse depois da segunda, né, assim a gente já estaria mais habituado. HAHA, brincadeiras a parte, acho que apesar do nervosismo você se saiu muito bem. É sempre importante lembrar de parar e dar uma respirada. E trabalhar com pessoas é realmente incrível. Amo histórias de vida. <3

    Beijo, querida!

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  2. Brendha, menina, amei demais esse post. Primeiras vezes são mesmo aterrorizantes e não sei se concordo que elas são boas o tempo inteiro (não no início, pelo menos), mas são muito necessárias. No final, acho que o importe é mesmo a gente parar e respirar aqui, rapidão, e então seguir em frente e fazer o que tem que ser feito, encarar o que tem que ser encarado. Deve ser muito mais difícil quando isso envolve outra pessoa, mas deve ser recompensador na mesma medida.

    beijo!

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  3. Sabe que isso me lembrou aquela pergunta "Qual foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?"? Enfim. Muito querido seu relato e imagino que você tenha se saído muito bem e que o paciente deva ter se sentido bem também. Acho importante a atenção às histórias e o encanto pelas pessoas. Primeiras vezes podem ser apavorantes, mas confie (nela e em todas as outras)!

    besos!

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  4. Acho super importante essa sensação de desconforto misturada com frio na barriga quando a gente vai lidar com o próximo porque, de uma forma ou de outra, a gente se cerca de mais cuidado no que vai fazer, sabe?

    No meu primeiro atendimento ao público também tive a sensação maluca de não ter ideia do que eu precisava fazer, mas respirando fundo e invocando deuses que nem sei se existem de verdade, a agonia passou.

    Mais dia menos dia tudo vai se arrumando em seu lugar, o que não retira em nada a graça dessas primeiras vezes que, conforme você bem disse, a gente não esquece.

    Boa reflexão! Obrigada por compartilhar conosco!

    Beijos

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  5. Que graça esse texto,admiro a capacidade que algumas pessoas tem de escrever sobre fatos cotidianos e deixá-los incríveis <3
    Fazer algo pela primeira vez é realmente assustador,da um branco na cabeça,um desespero,mas também uma sensação boa por experimentar novas situações.
    Beijo

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